19 de fev. de 2014

Tecnologia da Distorção

AVISO DE CONTEUDO: Se você toca música de barquinho da bossa nova, não tem necessidade de ler esse post!
Por outro lado, se você já se viu em situações onde a sua guitarra não tinha "punch" o suficiente ou soava meio "embolada" e quiser entender porque isso acontece e como evitar esses problemas eu sugiro a leitura do conteúdo abaixo.






Reflexão inicial:

Se eu pudesse redefinir o verbete "guitarrista" no dicionário ficaria: "Estranha criatura apreciadora da distorção harmônica que os técnicos de audio trabalharam tão duro para se verem livres da mesma em seus equipamentos." É curioso que as tecnologias e metodologias tenham avançado tanto no sentido de criar equipamentos com maior fidelidade e menor nível de distorção em todos os equipamentos, exceto nos de guitarra onde uma vasta maioria dos guitarristas (e por conseguinte engenheiros de equipamentos para guitarra) estejam procurando níveis cada vez maiores desse pesadelo do Hi-Fi. Ainda sim são comuns reclamações como som embolado, falta de definição e punch, falta de peso e outras, mas qual o motivo por trás disso?

Distorção, ganho e compressão:
Guitarristas frequentemente consideram passagens mais rápidas, tappings e ligados mais fáceis de serem executados com distorção, as notas precisam de menos força aplicada para soar e ficam mais fluídas e constantes em volume, o que é um efeito da compressão.
A fim de se distorcer um sinal você o amplifica até um ponto onde a onda original é deformada por uma incapacidade do circuito de reproduzir o sinal da forma como ele foi recebido, a distorção é um "erro" onde harmônicos não existentes no sinal original são observáveis na saída do circuito.
Um sinal de maior amplitude literalmente "esbarra em um limite" e distorce enquanto um de menor amplitude é amplificado até estar perto desse limite, o que ocasiona compressão.
No gráfico acima vemos as características de distorção de um transistor (vermelho) e uma válvula (verde), a válvula comprime progressivamente e distorce de uma forma suave enquanto o transistor amplifica até o limite e depois limita abruptamente o sinal, de forma a aproximar o sinal de uma onda quadrada.

"Menos é mais":
Falta de punch pode significar distorção excessiva, apesar da quantidade de guitarristas que usam o termo, poucos sabem o que ele realmente significa. Por incrível que pareça o punch não é produzido pelo barulho, mas pelo silêncio! Experimente tocar uma cavalgada abafando as cordas e sem abafar e você vai chegar a essa mesma conclusão. Se você exagerar na distorção vai perder a dinâmica de criar uma queda de volume notável depois das palhetadas, a compressão vai "igualar" tudo e tirar a sensação do "punch", o que significa que se você não tem uma marcação bem definida dos ataques você deve diminuir a distorção ao invés de aumenta-la e talvez até palhetar mais forte.
O "som embolado" é outro sinal de excesso de ganho e/ou erro de equalização. As notas "soam mais fácil" com mais distorção (e compressão) mas isso também significa que se você esbarra ou raspa nas cordas você terá vários ruídos indesejados amplificados diversas vezes (o que também torna recomendável trabalhar a sua "pegada").

Pre EQ e Post EQ:
Sugiro experimentar deixar o TONE da sua guitarra fechado e aumentar os agudos do seu pedal, você vai notar que o som fica bem mais embolado, depois experimente usar uma distorção com menos ganho e filtrando agudos depois de um overdrive leve com um boost nos agudos, você vai ter mais punch e definição (mas infelizmente mais ruídos). A ideia é manter o sinal definido comprimindo e distorcendo mais os agudos e filtrando-os depois da distorção, mantendo os graves mais "firmes".
Um dos motivos dos amplificadores valvulados terem mais definição quando distorcem é a maneira como o sinal é distorcido, gradualmente entre estágios que atenuam graves e distorcem, atenuam graves e distorcem.

Deixo aqui o esquema elétrico do preamp do Marshall JCM800 para demonstrar esse princípio, os capacitores de desacoplamento com os resistores de pull down entre um estágio e outro, os capacitores nos catodos das válvulas (C1 e C3) e o filtro RC em paralelo (C6 e R14), todos causam um corte de graves, para o som distorcido não ficar embolado. Para os que consideram o JCM800 muito ardido tem algumas modificações justamente nesses setores para diminuir a quantidade de graves que são cortados.

Classificação:
Por algum motivo os guitarristas passaram a classificar as distorções em grupos com diferenças no ganho disponível e topologia do circuito (porém não há uma convenção). AB com alguns exemplos de pedais e músicas onde é possível ouvir o timbre referido:

Crunch - O som "quebra" com acordes e palhetadas mais fortes, é "quase clean" e procura replicar o som de um amplificador valvulado trabalhando no limite de volume e distorcendo de forma bem sutil.
Pedais: Fulltone OCD, Xotic AC Booster, Xotic RC Booster
Músicas: Red Hot Chilli Peppers - Dani California (verso) / Stevie Ray Vaughan - Mary Had a Little lamb / ACDC - TNT / Eric Clapton - Cocaine





Overdrive - Pouca compressão e não muito ganho disponível, por vezes usado para saturar o pré do amplificador ou antes de uma distorção de maior ganho como booster. Soa mais sujo do que um crunch mas não chega a ter o ganho de um distortion, muito usado pelos blueseiros.
Pedais: Ibanez Tube Screamer, Marshall Bluesbreaker, Boss SD1
Músicas: Stevie Ray Vaughan - Pride and Joy / The Cult - Wild Flower / Jet - Are you gonna be my girl





 Distorção - Mais compressão e ganho, apesar de ser um nome genérico para todos os outros tipos de drive, em uma classificação ele seria mais agressivo do que o crunch e o overdrive, é o efeito que definiu o som do rock dos anos 80 e 90 como alternativa aos fuzz dos anos 70.
Pedais: Boss DS2, ProCo RAT, MXR Distortion +, Marshall Shredmaster, Fulltone Fulldrive
Músicas: Pearl Jam - Alive / Nirvana - Blew / Metallica - Sad But True

  


Fuzz - Uma classe completamente diferente de distorção dos anos 70, desde um drive mais contido até um timbre comprimido ou até mesmo sons oitavados e imprevisíveis, apesar de poder ser considerado um pedal de distorção essa classe que por merecimento já teve seu próprio artigo escrito nesse blog (link aqui).
Pedais: Dallas Arbiter Fuzz Face, Analogman Sunface, EHX Big Muff Pi, Vox Tonebender.
Músicas: Jimi Hendrix - Foxy Lady / Smashing Pumpkins - Cherub Rock / Wolfmother - Colossal / Black Crowes - Walk Believer Walk

High Gain - Quando a distorção atinge níveis extremos de ganho, o heavy metal e seus estilos sucessores passaram a usar afinações mais baixas e distorções mais intensas, frequentemente se faz necessário o uso de um Noise Gate para conter o ruído gerado e a equalização faz uma grande diferença pois as características do timbre original e a dinâmica são praticamente inexistentes no sinal processado.
Pedais: Digitech Death Metal, Boss Metalzone, Line6 Uber Metal, EHX Metal Muff
Músicas: Soil - Halo / Korn - Did my Time / Rammstein - Mein Teil
 


Amp Sim - Simuladores de amplificadores ficaram mais famosos recentemente como exemplo mais notável o GT2 da Sansamp que prometia timbres de Marshall, Fender e Mesa Boogie até com ajustes de microfonação, pedais assim funcionam melhor ligados ao return do amplificador (pulando o preamp do mesmo) ou em sistemas mais lineares. Geralmente a simulação é de amplificadores valvulados porém feita com transístores, amplificadores operacionais e tecnologia de estado sólido apesar de alguns simuladores usarem uma só valvula em algum estágio. 
Pedais: Sansamp GT2, Behringer GDI, Joyo California, Vox Tonelab



Preamp Stompbox - Ao contrário dos simuladores, aqui o setor que é o principal responsável pelo timbre de amps como o JCM800, Soldano SLO, Mesa Dual Rectifier e outros é construído em uma carcaça de pedal, alguns incorporam um footswitch para troca de canais, além do bypass. A sugestão aqui é ligar direto em um power amp e um stack para não ter nenhum processamento de outro preamp interferindo no som desse pedal, como melhor relatado e explicado no artigo sobre sets modulares (aqui).

Pedais: Mesa Boogie V-Twin / BK Butler Tube Driver / 56inc Tubestation

Distorção recomendada para você:
A distorção adequada para você vai depender do seu set, vou exemplificar:
Amp de 2 canais - Supondo que você use e goste do canal sujo do seu amp mas precise de mais ganho, um booster ou overdrive vão resolver esse problema distorcendo mais o seu amplificador, mantendo as características dele que você gosta. Vale lembrar que pedais de modulação, delay, reverb ficam melhores no loop do amplificador nesse caso, o que pode gerar uma necessidade de cabeamento mais complexa.
Amp de 1 canal - Você usa apenas o canal limpo (mesmo que ele tenha outro) e pretende deixar o pedal ter o caráter dominante no seu timbre, pedais com mais controles de regulagem são recomendáveis. Ao contrário do set anterior, pedais de delay, reverb e modulação podem vir ligados imediatamente após esse pois o sinal já foi distorcido antes de ser processado por eles. Outra vantagem é ter uma maior gama sonora disponível, um pedal de distorção scooped mid pra bases e um com médios mais pronunciados e maior ganho para solos por exemplo, ou um overdrive que realce essas características.
Power Amp + Stack - Algumas empresas já comercializam caixas ativas para guitarra (sem preamp de guitarra) e outros guitarristas usam amplificadores de potência e caixas separadas em sets modulares (como tratado aqui). Nesse caso um preamp stompbox forma o melhor conjunto e pedais simuladores de amp também soam bem melhor, o set pode ser completado colocando outras distorções antes desses pedais e outros efeitos após.

Por fim, vale ressaltar que não existe uma convenção e experimentos são recomendáveis para analisar os resultados com o seu bom senso e seus ouvidos, esse não é um guia definitivo de como conseguir o drive dos sonhos, mas um ponto de partida para os que começam a busca e uma orientação aos que já o fizeram. Deixe nos comentários desse artigo o seu setup atual e se você está satisfeito com ele!

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